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Dominando a inércia 3 – atemorizando quem está dentro e quem está fora

24 mar

Sempre adorei dar rolê com a Veraneio do meu pai. Por uma longa época era o carro de uso do dia a dia dele aqui em São Paulo, consequentemente era o carro disponível quando eu estava rideless. Foi uma época que eu dei vários rolês, fiz várias viagens, ou seja, curti bastante o carro. Mas uns tempos depois meu pai desencanou de São Paulo e passou a ficar mais no sítio, no MS, e junto foi a Veraneio, que eu deixei de usar com frequência. Mas lógico, quando eu ia (e ainda vou) pra lá, não importa o quão bacana seja a caranga que eu estou, sempre utilizo a Veraneio para alguns dos rolês. E dessa vez não foi diferente, estava lá com os brothers e resolvemos ir para o balneário municipal, à margem do Rio Paraná, onde tem uma área de lazer que a galera da cidade vai curtir. E também, é lógico, um butecão pra gente tomar umas.

Fomos lá em uma pequena turma, não me lembro exatamente de todos, mas comigo na Veraneio estava o Hairy Bee, Brandon com mais alguém na sua Saveiro tuningada e Big T na sua Silverado 6.07 fuçada. Ficamos lá vendo o movimento, falando de carro, comendo umas porções e tomando umas geladas. Nada de exagero no álcool, afinal lá era só um happy hour, a pegada mesmo era de noite na rua, mas era o suficiente já pra dar uma lubrificada. Eu obviamente só tomei tubaína. Mas aí foi caindo o sol, o povo indo embora, resolvemos que era hora de ir também.

Aí calcula, um bando de xarope, todo mundo lubrificado, cada um com sua caranga da hora (pelo menos os seus respectivos donos achavam), sai todo mundo fazendo movimento, causando. Big T saiu na frente, moendo a Silverado, escape direto saindo na lateral, pente na turbina, bomba aberta, ou seja, dá uma canseira em carrinhos bundões. Logo na bota fui eu, mas apesar dos 46.5Kgfm do S4T-Plus da Veraneio não dava pra acompanhar a Silverado, que foi distanciando. Logo atrás veio o Brandon, com a Saveiro, que aliás também andava mais que a Veraneio, pelo menos em circunstâncias normais. Vocês vão entender o que eu considero circunstâncias normais, aguardem.

A saída do balneário era um estradão de cascalho muito bem assentado. Bem largo, bem terraplanado, e como não passava muito caminhão, era também muito liso. Isso seguia por algumas centenas de metros, não creio que chegue a 1Km, que aí desembocava em T na estradinha que leva até a cidade. Já essa era bem coxinha, daquelas que em teoria passa dois carros, mas na maior parte do trecho o trilheiro formado é de um carro só, pelo centro. Ou seja, a alegria do estradão da hora dura pouco, e de boa, melhor não se empolgar. Bom, eu pelo menos estava ciente disso, mas já outro alguém… eu fui no cascalhão de pé no fundo, primeira, segunda, terceira, quarta – diesel engole rápido as marchas – e acho que consegui atingir algo ali perto duns 100 por hora. Brandon vinha na bota, me alcançando, só que já à nossa vista estava o T com a estradinha e o barranco. Hairy Bee começou a falar do meu lado “cara, alivia, o Brandon não vai tirar o pé e vai acertar o barranco”. Problema meu? Pé no fundo, e de olho no barranco com a mente maquinando os cálculos mais minuciosos para determinar a última fração de segundo possível para trocar o pé direito de pedal e afundar cuidadosamente no freio pra ancorar sem travar. Mas Hairy Bee continuava dizendo “o Brandon não vai parar, alivia”. Eu? Pé direito entortando o pedal. “Cara, o Brandon não tem noção, ele não vai conseguir parar!!!”. Até que enquanto eu calculava o ponto de frenagem, eu vejo de rabo de olho a Saveiro botando o nariz na altura do meu eixo traseiro, e o Brandon lá com cara de sucesso, como quem estava conquistando uma vitória sobre mim. Pronto, aí foi o ponto! Milésimo de segundo para o pé direito passar pro freio e o trambolho começa a entornar suas reações como um animal indócil reage a um comando impróprio do seu condutor. O narizão já afunda, a bunda levanta, as rodas traseiras ficam na iminência do desgarre. Assim como na subida as machas são engolidas rapidamente na descida também, e a cada pancada da embreagem na marcha de baixo a trajetória, que há instante era linear, sobreamortecida, se transforma em algo volátil, instável. Tanto frente quanto traseira ameaçam a divergir, mas sem acordo entre elas, enquanto uma pequena disputa com volante garante que elas não vão trocar de posição. E foi perfeito, hora que o nariz apontou no T a velocidade era a exata para guinar o carro, sem estresse a 90 graus na pequena estrada. Foi o que eu fiz? Não, parei completamente para terminar de observar a façanha do Brandon. No momento que eu meti o pé no freio o movimento relativo da Saveiro em relação à Veraneio foi como um estilingue, parece que foi arremessada à frente. Nesse mesmo instante acho que ele se tocou que seria necessário frear também, mas aí já era tarde. Até digo a vocês que na minha visão o Brandon demonstrou habilidade com a situação, conseguiu também frear de maneira eficiente, sem arrastar, só uma pena que ele fez isso um pentelhonésimo após o limite. Impressionante como centésimos de segundos fazem a diferença. Já com os beiços praticamente beijando o barranco ele ainda me arrancou um esterço e aceleração, manobra atípica para condutores normais, mas eficiente em veículos de tração dianteira. A frente até tentou tomar rumo aos 90 graus da estradinha, mas a inércia não permitiu se adequar à trajetória desejada, e o tão aguardado beijo aconteceu. Beijinho delicado, tipo selinho, daqueles de canto, que bate na trave, mas foi um beijo. Sorte dele que tinha aquela carreira de areião empurrada pro barranco pela patrola, afofou a chegada do carro antes da carroceria atingir o barranco. Aliás não sei como não destalonou o pneu, pois pegou de atravessado.

Enfim, eu lá parado, Brandon enfiado no areião do barranco, e o Hairy Bee do meu lado falando “eu te disse, eu te disse, eu te disse”. Brandon pouco se fudendo pra cacada mandou ré, arrancou a Saveiro do barranco, jogou primeira e ainda foi tirar onda fritando, de freio de mão puxado, e cavucando o chão. Bom, pra mim já deu, deixa ele brincando em segurança que vou sair na frente. Já tenho poeira do Big T pra comer, não vou deixar mais um. Peguei a estradinha e meti o pé na bota. Já estava começando a escurecer, mas ainda dava pra ver adiante, não tão longe, e nuvem de poeira que a Silverado deixava, e eu sabia que ela andava forte, seria um desafio arriscado tentar alcançar. E assim segui por alguns quilômetros, ultrapassando o povo todo que também voltava do rio para a cidade, balançando com vontade a traseira da Veraneio, escapando nas curvas, varando a buraqueira no limiar entre uso e abuso do carro, e quase descolando do chão nos esfria saco. De repente percebo que a nuvem de poeira adiante começa a ficar próxima e menos intensa, o que significada que Big T havia diminuído o ritmo. E foi, chego próximo dele, num trecho em que a estrada tinha apenas um trilheiro pelo centro, sem possibilidade de ultrapassagem, vejo adiante uma Palio Weekend arrancando esforços de suas entranhas para se manter à frente da Silverado, que parecia querer passar por cima da Palio. Mano, na boa, larga de ser ignorante! Mesmo que o cara da Palio não saiba que quem está atrás é o insano do Big T, não saiba que a Silverado tem pimenta, não tem como querer disputar na andada com uma tranqueira dessas de tração dianteira sem a menor aptidão para tráfego em chão irregular. É aí onde volta a colocação que citei anteriormente, “em circunstâncias normais” um carro de passeio pode levar uma caminhonete bruta, mas na buraqueira, não tem como, se quiser acompanhar vai largar as rodas com um pedaço do monobloco junto. E era quase isso que o cara estava fazendo, arrebentando com a Palio a uns 100 por hora na estradinha zuada, quase todo o tempo raspando assoalho no chão, e atrás dele, não mais uma, mas duas caminhonetes over two tons quase engolindo.

Aí meu instinto insano, porém frio e calculista, aflorou. Big T era insano, mas sem as outras duas qualidades, e não teve a manha de arriscar o que eu fiz. Chegamos a um trecho da estrada que era uma grande planície, uma retona de mais de quilômetro. E pela característica plana havia a típica dificuldade de escoamento de águas pluviais, o que deu àquele pedaço uma característica bem peculiar. O lado direito da estrada, por toda a extensão do trecho, formou uma longa poça de água, que depois de seca deu aquela forma típica de assoreamento, aquela areia desenhada pela água, totalmente plano, e quase liso, porém também muito fofo e instável. Mas por causa disso o trilheiro se formou à esquerda, e era por ali que Palio e Silverado seguiram, deixando um espaço suficiente para ultrapassagem pela direita. Ah mano, é agora. Joguei a jabiraca à direita e soquei o pé no fundo. Hairy Bee se agarrou no banco e engoliu a voz, enquanto a Veraneio começava a rebolar a bundinha em velocidade 5 no areião. A tração era limitada, estava muito difícil fazer o carro ganhar velocidade, mas ainda assim tinha uma merreca a mais de pique que os outros dois, que estavam limitados pela capacidade da Palio. Aos poucos fui avançando dos 100Km/h, e já tinha a Silverado ao meu lado esquerdo. Poucos segundo após, ainda com a Veraneio dançando no areião, tinha a Palio ao meu lado, quando então vejo uma imagem que ninguém ali gostou de ver. Poucas centenas de metros adiante tinha um entroncamento, e um outro carro apontava o nariz na nossa estrada, anunciando uma entrada em nossa direção. Cara, eu nem olhei a que velocidade estava naquela hora, mas arrisco a dizer que eram uns 130. Em condições normais, de pé no fundo por tanto tempo, o carro tinha fôlego pra passar de 150, mas com o fofão do chão amarrando estimo que empaquei nos 130. E ciente de tudo isso, tudo que eu menos queria era ver aquele cara de frente comigo na mesma pista. Decidi não tirar o pé, o algoritmo poderoso em minha mente não havia dado status vermelho ainda, se precisasse ainda tinha uma pequena margem pra começar a frear, mas enquanto isso eu simplesmente mentalizava “não entra, não entra, não entra”. Aliás, tenho uma crença de que essa mentalização soava em coro, Hairy Bee ao meu lado, me vendo amaçando o assoalho, certamente também rezava por isso, bem como o mano da Palio e o Big T. E o maninho da caranga lá também parece que captou nossa irradiação, vi que ele demorou demais para tomar alguma ação e tive a (quase) certeza de que eu podia manter, ele não ia entrar. Mas também, de boa, imagina se é você, aponta o nariz pra entrar numa estrada e vê uma nuvem de poeira acompanhada por um comboio, com uma titica de plástico à frente se esguelando e autodestruindo, e dois paquidermes descontrolados empurrando atrás, de faróis altos e todos os milhas presentes acesos. Não interessa se o cara está no direito dele, ninguém em sã consciência ia se meter no meio dessa treta. E foi isso, o cara ficou lá apenas de espectador, quando eu vinha já à frente do grupo, ainda pelo lado direito e fofo, prestes a concluir minha manobra. Muito próximo do maninho no entroncamento eu pronunciei ao trambolho meu desejo de mudar de trajetória, ele como animal xucro não concordou, mas de domínio das rédeas eu exigi, mandei a frente para a esquerda, que lentamente me obedeceu, mas como numa inércia dessas eu não tenho domínio completo do “animal”, a traseira discordou da minha decisão e resolveu se manter onde estava. Passei de frente com o maninho deixando 4 rastros de pneu no chão, frente de um lado da estrada e traseira do outro, ainda procurando formas de contato com o areião para ver se acatava com a nova trajetória. E após longas frações de segundo, a primeira roda traseira atingiu o chão firme, e foi o suficiente pra traseira se convencer que deveria obedecer. E xucrisse no último, quando obedece obedece com força, foi o segundo pneu atingir o chão firme que a traseira se arremessou no sentido contrário. Aí o típico comportamento do sistema sub amortecido, no limiar para colapsar. Mandei uma reação sobrenatural no volante – que leva eras para levar o comando às rodas – que jogou a frente no contraesterço, a banheira toda começou a deslizar para a esquerda da pista, se aproximando do barranco. Mas em seguida consegui trazer o sistema de volta à convergência, a traseira começou a esboçar que desistiria de desgarrar, e eu pude tomar as rédeas ordenando a massa de volta à direita, evitando o barranco. E impressionantemente foi no momento exato, calculado, mediúnico, bem naquele trechinho de metros em que a geringonça escorregava à esquerda havia um mourão de cerca desgarrado, desalinhado com o retão, avançando pra dentro da pista. Eu como condutor tinha meus olhos fixos no meu objetivo, onde EU queria que o carro fosse, e não onde eu tinha medo que ele pudesse ir, mas Hairy Bee ao meu lado não, mirava o mourão querendo se meter no meio do nosso caminho. Aliás, no meio não, no lado, quem veio atrás disse que viu a lateral da veraneio passar lambendo o mourão, que no meio do poeirão mal deu pra saber se passou ileso ou se a quina do para-choques traseiro tinha trocado matéria com o mourão. Mas sim, passou ileso, poucos metros à frente a Veraneio alinhou, a trajetória convergiu novamente, e estava lá eu, à frente da Palio, da Silverado, rodando aos meus 100 e tantos Km/h, com o pé direito colado com o assoalho, permanente e firmemente da mesma forma que o orifício de Hairy Bee também permanecia trancado.

Pouco à frente a estrada se alargava, como estava próximo da cidade retornava aquela pavimentação mais assentada, pista larga e cascalho, com diversos esfria saco. Olhei pelo retrovisor e vi que a Palio havia simplesmente sumido, acho que depois da tensão no entroncamento e os trambolhos a envolvendo por todos os lados o cara desistiu e deixou Big T passar. Varei o primeiro esfria saco na mesma tocada que eu vinha, lá aos meus 100 e tanto, mas percebi que novamente estava prestes a ultrapassar o limiar do uso para o abuso, e pra não deixar as rodas descolarem do chão e a suspensão enxergar o batente, pela primeira vez tirei o pé. Big T, o insano, depois daquela merda toda não podia deixar de impor sua insanidade, manteve o pé firme e passou varado o segundo esfria saco, me deixando ver as 4 rodas da Silverado ganharem altura longe do chão, enquanto ele me acabava de me ultrapassar pelo ar. E o Brandon? Veio lá atrás, modesto, assistindo de longe a presepada toda.

Depois de chegados à cidade, sem conversar foi cada um pro seu canto, se arrumar pra sair à noite. Mas óbvio, o assunto rendeu bastante, naquela noite, nos dias seguintes, e até hoje, a história é lembrada nas rodas de conversas de carro, e principalmente Hairy Bee descreve com exaltação sua experiência de assistir de camarote a peripécia. E a Veraneio mais uma vez surpreendeu, demonstrando seu talento em lidar com o habitat extra urbano, mas deixando claro que precisa de um condutor com a devida intimidade com a situação para não permitir que o animal xucro eventualmente traga algum desgosto para aqueles à sua volta.

Vídeo recente, fazendo o mesmo trajeto narrado na história. Mas a estrada foi bem modificada, o palanque avançado foi mudado e o chão está bem melhor pra dar cacete.